6.3.09

*Porque me faz sorrir, e é um sorriso de esperança, partilho convosco..

Acabo de jantar, tomo meu café, e fico contemplando o quadro diante de mim: foi colocado dentro de um rio e ali repousou por um ano, esperando que a natureza desse o retoque final ao trabalho da pintora.
Metade da pintura foi carregada pelas águas e pelas intempéries, de modo que as bordas são irregulares; mesmo assim, posso ver ainda parte da bela rosa vermelha, pintada sobre um fundo dourado. Conheço a artista. Lembro-me de 2003, quando fomos juntos até uma floresta dos Pirineus, descobrimos o riacho que naquele momento estava seco, e escondemos a tela debaixo das pedras que cobriam seu leito.
Conheço a artista, Christina Oiticica. Neste momento, está fisicamente a 8 mil quilômetros de distância, e ao mesmo tempo sua presença está em tudo que me cerca. Isso me alegra: mesmo depois de 29 anos de casados, o amor é mais intenso que nunca. Jamais imaginei que isso fosse acontecer: vinha de três relações que não tinham dado certo, e estava convencido que não existe amor eterno, até que ela apareceu – em uma tarde de Natal, como um presente enviado por um anjo. Fomos ao cinema. Fizemos amor no mesmo dia. Eu pensei comigo mesmo: “não vai durar muito”. Durante os dois primeiros anos de relação, estava sempre preparado para que um dos dois fosse embora. Durante os cinco anos que seguiram, eu continuava achando que era apenas acomodação, e em breve cada um seguiria seu destino. Tinha convencido a mim mesmo que qualquer compromisso mais sério iria me privar de “liberdade” e impedir-me de viver tudo aquilo que desejava.
Vinte nove anos depois continuo livre – porque descobri que o amor jamais escraviza o ser humano. Sou livre para virar a cabeça e vê-la dormindo ao meu lado – essa é a foto que tenho em meu telefone celular. Sou livre para sairmos, caminharmos, continuar conversando, discutindo – e eventualmente brigando, como sempre. Sou livre para amar como nunca amei antes, e isso fez uma grande diferença em minha vida.
Volto ao quadro e ao rio. Estávamos no verão de 2002, eu já era um escritor conhecido, tinha dinheiro, julgava que meus valores básicos não haviam mudado, mas como ter absoluta certeza? Testando. Alugamos um pequeno quarto em um hotel de duas estrelas na França, onde começamos a passar cinco meses por ano. O armário não podia crescer, de modo que limitamos nossas roupas. Percorríamos as florestas, jantávamos fora, ficávamos horas conversando, íamos ao cinema todos os dias. A simplicidade nos confirmou que as coisas mais sofisticadas do mundo são justamente aquelas que estão ao alcance de todos. Para meu trabalho tudo que precisava era um computador portátil. Acontece que minha mulher é…pintora.
E pintores precisam de gigantescos ateliês para produzir e guardar seus trabalhos. Não queria de maneira nenhuma que sacrificasse sua vocação por mim, de modo que me propus a alugar um local. Entretanto, olhando em volta, vendo as montanhas, os vales, os rios, os lagos, as florestas, ela pensou: por que não trabalho aqui? E por que não permito que a natureza trabalhe comigo?
Daí nasceu a idéia de “armazenar” as telas ao ar livre. Eu levava o laptop e ficava escrevendo. Ela se ajoelhava na grama e pintava. Um ano depois, quando retiramos as primeiras telas, o resultado era original e magnífico.
Vivemos naquele pequeno hotel dois anos inesquecíveis. Ela continuou a enterrar suas telas, já não mais por necessidade, e sim por ter descoberto uma nova técnica. Amazônia, Mumbai, Caminho de Santiago, Lubijana, Miami. Hoje está longe, mas amanhã, ou na semana que vem, estará perto de novo. Dormindo ao meu lado. Contente, porque seu trabalho começa a ser reconhecido no mundo inteiro.
Neste momento, olho apenas a rosa. E agradeço ao anjo que me deu dois presentes naquele natal de 1979: a capacidade de abrir meu próprio coração, e a pessoa certa para recebê-lo.


"A rosa dourada", Paulo Coelho