7.1.09

Passion*

Poderia ter sido uma noite igual a tantas outras. Mas não era. E nem a propósito, como que a adornar o momento, uma lua cheia brilhava desafiante no céu.
Depois da animação habitual na pista, o silêncio. A excitação do costume em corpos suados deu lugar à quietude expectante. Retiraram-se para os lugares sentados que antes ocupavam e aguardaram.
No palco iniciava-se o ritual. Primeiro o bater leve das mãos, as palmas que se encostavam uma a outra. Depois o rodopiar de um corpo ao som das castanholas, até que, por fim, os pés bateriam no chão de forma furiosa e dariam início à dança que haveria de enfeitiçar todos os presentes. Dois homens acompanhavam a bailarina. De um deles, o que estava sentado, surgiu o som de dedos a passarem por cordas de guitarra. De outro, que se tinha dirigido para o microfone, emanou um som rouco e profundo que em breve se tornou canção. Ninguém na assistência reconhecia a língua, mas todos sem excepção conseguiam sentir o significado. Um amor tinha sido perdido.

O deles, pensou ela. E disfarçada por entre a multidão de forma a não ser reconhecida, permitiu-se a si mesma recordar o dia em que tudo aconteceu.
Como da primeira vez, seguiu-lhe as mãos, viu-as descer para o peito que se entrevia por entre os botões abertos da camisa negra. Nessa noite, enquanto ele cantava, olharam-se por segundos e foi o suficiente para se saberem um do outro. Quando ele saiu do palco, ela seguiu-lhe o olhar e depois os gestos. Seguiu-o a ele, sem qualquer dúvida que aquele era o caminho certo. Quando voltaram a olhar um para o outro, estavam sozinhos. Ele foi o primeiro a aproximar-se. Ela rendeu-se ao movimento dele. Com a mesma fúria apaixonada com que entoava melodias, arrancou-lhe a roupa do corpo. Ao som da música lá fora conheceram-se. Reconheceram-se. Ela soube. Ele sentiu. Teve medo do que sentiu. Dividiu-se entre o desejo do beijo e a vontade de lhe bater. Queria marcar-lhe a pele. Queria ficar nela para sempre. Era lhe igual.
Ela adormeceu nos braços dele com a certeza que o amava. E que acordaria sozinha na madrugada seguinte. Enganou-se. Ele continuava a abraça-la de manhã. Coube-lhe a ela dizer adeus.
Anos depois, leu o cartaz que o anunciava de volta a cidade. Depois de tanto tempo, o nome dele. O nome. Ali. Ao alcance da mão. Não teve como resistir ao apelo de o voltar a ver.
E nessa noite, enquanto ele contava a história de um amor perdido, ela rezou baixinho para que os olhos de ambos se reencontrassem novamente. Rezou para que pudessem ter mais uma oportunidade. Rezou para finalmente lhe poder dizer ao ouvido que estava marcada para todo o sempre.

Ana Almeida

* Ao som de A MI MANERA - GIPSY KINGS

1 comentário:

Anónimo disse...

Sempre que me possa passar pela mente que já vi tudo em relação ao teu talento na escrita, surpreendes-me.
Bravo, minha amiga!