22.1.09

Cativa-me *

Cativa-me. Por favor, cativa-me, pedia a raposa ao principezinho, e peço-te eu a ti. Cria laços entre nós para que te sinta único no mundo, para que me sintas a mim. Por favor, cativa-me.
Tenho vivido uma Vida maravilhosa. Todos os dias acordo e volto amar cheiros e cores. E é tão bom viver assim. Agradecida. Em profunda e serena tranquilidade.
No entanto, hoje não pára de ecoar na minha mente uma frase: "um dos sintomas da morte dos nossos sonhos é a Paz. Porque a vida passa a ser uma tarde de domingo.." E eu pergunto-me; como permiti eu, que se instalasse este conforto no meu coração?! Porque deixei eu, que ele parasse de bater apaixonadamente?! Se me olho ao espelho sorrio, no entanto, se procurar mais fundo, sei que os meus olhos, que os meus sonhos e planos, deixaram de amar. Eu sei.

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Fazes-me falta esta noite. Dói-me a tua ausência e por absurdo que pareça, sabe-me bem esta sensação. Porque quando estou do teu lado, volto a ser uma menina e eu quero voltar a ser uma menina e ter sonhos cor de rosa, e borboletas no estômago e pernas que insistem em tremer. Eu não fui feita para tardes de domingo, meu querido. Não te quero atravessar como quem ultrapassa uma meta. Eu não quero ganhar nada. Estou cansada de vitórias sensaborosas. Eu quero o jogo de volta. Eu quero o risco. Quero de volta a paixão e o medo, estou cansada de estar sempre certa. E segura. Eu quero que me atinjas! Eu preciso que me atinjas!
Se estivesses aqui agora, inundava-te com perguntas, que de tão pequenas, contêm o mundo. O teu mundo. O mundo que anseio conhecer. Onde é que tu nasceste, afinal? Tinhas medo do escuro em pequenino? E o teu melhor amigo, como se chamava? Onde estudaste? Qual era a tua disciplina favorita? Diz-me como se chama o teu filme favorito e canta ao meu ouvido a música que te faz dançar. Conta-me, porque sítios andaste até aqui chegar. Fala-me do que te assusta, do que te faz chorar e onde é que não pára nunca de doer. Depois volta-te a rir comigo.
Cativa-me. Por favor, cativa-me. E a seguir, cala a minha boca com a tua. Quero a sensação avassaladora de dar um beijo e saber, naquele preciso segundo saber, que é o fim da vida como a conhecia.

Ana Almeida

* "O Principezinho", Saint Exupery
- «Cativar» quer dizer o quê?
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu - disse a raposa.
- Quer dizer criar laços...
- «Criar laços»?
- Sim, laços - disse a raposa. - Ora vê; por enquanto tu não és para mim senão um rapazinho perfeitamente igual a cem mil outros rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto eu não sou para ti senão uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativares, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E eu também passo a ser única no mundo para ti...
A raposa calou-se e ficou a olhar para o principezinho durante muito tempo.
- Por favor . cativa-me! - acabou finalmente por pedir.
(...) E o principezinho cativou a raposa. Mas quando se aproximou a hora da despedida..
- Ai! - suspirou a raposa. - Ai que me vou pôr a chorar.
- A culpa é tua - disse o principezinho. - Eu não te desejava mal nenhum, mas tu pediste para eu te cativar .- Pois pedi - disse a raposa. - Mas agora vais pôr-te a chorar! - disse o principezinho. - Pois vou - disse a raposa. - Então, não ganhaste nada com isso!
- Ganhei, sim, senhor! - disse a raposa - Por causa da cor dos campos de trigo - E em seguida acrescentou - Anda, vai ver as rosas outra vez. Vais compreender que a tua é única no mundo. Quando vieres ter comigo, dou-te um presente de despedida: conto-te um segredo.

(..)- Os homens já não se lembram desta verdade - disse a raposa. Mas tu não deves esquecê-la. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa...”

20.1.09

Porque Fazes Parte de Mim

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Lembro-me de seres genuína e de encarares os teus sentimentos de forma natural e, por isso mesmo, nem os tentares combater porque eram um prolongamento de ti. Lembro-me de te ver sorrir e dos teus olhos brilharem; de te ouvir questionar e expressares a tua revolta quando algo não corria bem; de te ver chorar e espelhares a tua tristeza com intensidade. Até que ele chegou e te espezinhou o coração genuíno.
Todos, os que interessam pelo menos, sabemos que corações puros e verdadeiros são uma presa fácil para abutres que teimam em dizimar tudo ao seu redor. E ele dizimou-te. Cansou-te, esgotou-te, fez-te penar e passaste a viver de frases bem pensadas e sorrisos bem escolhidos e assumiste a postura que já tão famosa te torna de “eu sou tão estupidamente feliz”.
Deixaste de querer sentir porque isso implica sempre dor e tu achas que já tiveste mais do que a que o teu amor merecia. Como não te permitiste sentir, não choraste, não gritaste, não fizeste o luto emocional, nem te permitiste lamber as feridas. Apenas te resignaste. E deixaste de querer sentir. E esqueceste-te que dor é sinónimo de emoção, de vida. Tu que tanto te gabas de a celebrar ... deixaste de saber o que a vida representa.
Eu quero ver-te sofrer. Eu quero ver-te penar. Porque esta foi sempre a forma que tiveste de sentir, de amar, de adorar. Porque esta é que é a verdadeira celebração da vida e nós nunca o soubemos fazer de outra maneira. Porque sempre concordaste comigo quando eu gritava aos sete ventos: “EU QUERO QUE ME ATINJAM!”. Porque sempre fomos defensoras acérrimas do amor incondicional. Porque quando se tem a nossa capacidade de amar, nada é ilimitado. Porque quando se é como nós ... os sentimentos não se contornam e muito menos se fingem. Porque quando vejo que não estás bem, já não o admites (há muito tempo). Mentes e revestes-te em mil outras que não existem em ti. Deixaste de ser tu. Abandonaste a tua essência e tudo o que foste e em que sempre acreditaste.
Sempre foste dos maiores corações que conheci até hoje e amaldiçoada seja eu se não voltarei a ver-te como de facto és. Nunca te permitirei que te tornes um bacalhau seco. E, se para tal, tiver que ser o teu reflexo, o teu espelho, assim o farei.
Há pouco tempo falei-te disto pela primeira vez. Contrapuseste, brincando, dizendo que voltarás a ser o que eras no dia em que eu aprender a amar-me. O que me parece que não entendes é que eu sempre assim fui e que o processo de aprendizagem é longo e penoso. Tu tornaste-te assim por opção.
Recorda-te ... o sermos tocadas pelo gelo não implica necessariamente que nos tornemos nele, pois se nos permitirmos, a queimadura cicatriza. Permite-te a cicatrização. Permite ao teu coração viver de novo. Permite ao meu coração acreditar, através de ti, como sempre foi. Porque fazes parte de mim e é através de ti e de tudo aquilo que sempre defendeste e em que sempre acreditaste que também ganho mais amor por mim mesma. Ao cuidares de ti, cuidarás de mim também e tornarás o meu caminho menos penoso. Humaniza-me e faz-me voltar a acreditar porque esta é uma das tuas missões aqui na terra.

Shana Andrade

18.1.09

Breu

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Dentro me mim a fina luz extingue-se,
O véu descai e flutua até ao chão de pedra,
Revelando um coração negro, magoado e sombrio,
Que seca mais e mais um pouco a cada batida.
Um sentimento que não busquei, nem procurei,
Que me torna vulnerável ao momento, a tudo, a todos.
Que me quebra, me revolta e me transtorna.
Que me mata aos poucos, numa dor aguda que não entendo.
Dizem ser sublime e nobre, não concordo.
Não posso concordar com a nobreza do que me enfraquece.
E não o conseguindo combater, porque se apresenta mais forte do que imaginei,
Deixo-o coabitar em mim, esperando que definhe como eu.
Eventualmente, sei que é o que acontecerá.
Mas até lá, preciso arranjar estrutura para conviver...
Conviver com este peso morto, que me impede de inspirar com facilidade.
Com esta desesperança, que só quem tem um coração teimoso conhece.

Shana Andrade

16.1.09

De Corpo e Alma

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Olha para mim, olhos nos olhos.
Deixa-te seguir o instinto e permite-te o abandono. Toca-me como se te pertencesse e faz-me sorrir e dizer-te piadas. Quero ouvir-te gargalhar. Beija-me à chuva. Envolve-me num delicioso abraço e beija-me com sofreguidão. Deixa-me respirar e exalar intensidade. Devolve-me a sensação de ter borboletas no estômago. Desafia-me e seduz-me. Corteja-me e devora-me. Cumpre o prometido e faz-me o desejado. Pulso por ti. Eleva-me e submete-me a ti. Compreende este ser estranho que, por algum motivo alheio a nós, se cruzou contigo. Deixa-me entranhar-me em ti para que o estranhamento passe a ser uma memória. Captura o momento e não o deixes escapar. Agarra-me, segura-me e não me abandones ao nada que me rodeia. Completa-me e preenche-me. Aceita-me e reconhece-me. Aceita-te e reconhece-te. Peca na verdadeira acepção da palavra ... porque só os grandes pecados justificam a lágrima. Não os pequenos que podiam ter sido tanto mais. Fala-me ao ouvido e confessa-te. Desliza as mãos em mim sem pressa. Sente-me. Marca-me e pede-me o mesmo. Trata por tu o meu íntimo porque já fazes parte dele. Não permitas é que a minha imaginação seja tão melhor e tão mais completa do que o momento vivido. Faz-me vivê-la. Vive-a. Busca a essência, o busílis, a causa, o limite. Não te destruas por tão pouco. Aprendeste a diferença entre conceber o crime e o realizá-lo. Aprende agora a diferença entre seres condenado por uma facada superficial e um homicídio glorioso e requintado. Não belisques a maçã. Não sorvas apenas uma gota do seu sumo. Dá-lhe uma estrondosa trinca. Mastiga-a com gosto e até ao caroço, digere-a e retira-lhe a vitamina. E depois segue o teu caminho, se assim o desejares, mas de alma cheia e pleno da convicção de teres errado em grande, só que por algo que o justificou, que tenha realmente valido a pena e, aí, poderás gritar a plenos pulmões: “Mea culpa, mea maxima culpa”!
E eu e a minha alma gritaremos contigo.

Shana Andrade

14.1.09

De Nada ...

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Ali, foste um gigante perante os meus míseros cinco centímetros de altura. Nenhum buraco estava próximo o suficiente para o qual me pudesse ter arrastado sem te dar a oportunidade de me olhares. Estavas tão incrivelmente alto e simpático e natural e conversador e ... indiferente.
As tuas palavras entravam-me pelo cérebro como chicotadas agudas, daquelas em que o som se propaga durante vários segundos. Apetecia-me fugir e tinha os pés pregados ao chão e o desgosto estampado na cara. A melhor das actrizes suicidou-se ali à tua frente, enquanto tu, impávido e sereno, te comportavas como se nada fosse, como se nos tivéssemos visto no dia anterior, como se eu fosse outra qualquer. Ias respondendo às solicitações dos que nos rodeavam e brincando, enquanto eu, mortificada, de pernas vacilantes e olhos perdidos, tentava encontrar a minha postura habitual, que tinha acabado de ser atropelada por ti à tua chegada e ali perecia em agonia. As palavras não me ocorriam, o sorriso fugiu assustado, o cérebro não respondia ... só os olhos viam. E recusavam-se a processar a informação.
Naquele minuto, tornei-me uma disléxica emocional, um ermita em total reclusão, uma abandonada pela sorte e, enquanto tu falavas com aquela que, aparentemente, outrora houvera sido eu, a sombra de mim tentava equilibrar-se em cima dos saltos que, amaldiçoadamente, naquele dia não usava.No meio de todo aquele celeuma, tentei buscar em mim a razão pela qual cessei a minha existência naquele momento. E, durante a minha busca até ali infundada, os meus olhos inúteis tentavam agarrar uma réstia de qualquer coisa nos teus e nada encontraram. Tão gentil, tão socialmente correcto e aprazível, tão acessível ... tão inacreditavelmente natural. Nem um grão de nervosismo, de embaraço ou de incómodo. Imaculado. E eu, a geralmente forte e inabalável, a tentar agarrar o coração que insistia em descer-me pela dignidade abaixo. Subtilmente, num dos muitos momentos em que te distraíram, consegui apanhar o desgosto, a tristeza, aquela dorzinha aguda, a estranheza e a criança de quatro anos que se agarrava envergonhada às pernas da mãe, que tentavam escapulir-me pelos poros, e estrangulei-as nas mãos que apertava com força dentro dos bolsos.
Só quando vocalizaste a despedida e te começaste a afastar, encontrei a resposta para o que tinha tentado perceber.
Ao dar-te espaço, perdi-te para a realidade. E, apesar da dura evidência, enquanto desaparecias no horizonte, tentei ler-te o andar, como se ele me pudesse contradizer tudo o que tinha acabado de constatar. Fiquei prostrada, lívida e com as unhas marcadas nas palmas das mãos, enquanto tu, de passo firme e decidido, me informavas da minha nulidade em ti e me davas a estranha certeza de ser a última vez que nos cruzávamos.

Shana Andrade

I could use somebody, someone like you*

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Conduzo na mais bela estrada do mundo. O céu está pincelado de cores mágicas, o mar está calmo, sereno. Ouço uma música maravilhosa na rádio. Perfeito. Um fim de dia perfeito.
Propício para pensar demais. E é o que faço. Tenho estado em meditação nos últimos minutos.
"Abdico da minha liberdade, apenas e só, para viver um grande amor." Foi a resposta que te dei ontem. Tenho-a dito várias vezes ao longo destes últimos anos. Brutalmente honesta. Não consigo fazê-lo de outra forma. Nem sei como te explicar melhor. São já tantos anos afastada das relações tradicionais. Não tenho necessidade de um companheiro para as noites frias de solidão, para andar de mão dada, para jantares e idas ao cinema, para fins de semana românticos. A verdade é que não sinto qualquer carência de afectos. Sou muitíssimo feliz. Completa. Preenchida. Espera, não me interpretes mal. Eu não disse que não queria. Eu só não consigo entender uma relação baseada nas faltas que temos. Porque não as tenho. Sou incapaz de manter relações vulgares. Porque eu, volto-te a dizer, eu quero viver uma grande história de Amor.
Mas agora, neste momento de introspecção, nestes instantes em que fumo um cigarro e olho para um mar maravilhoso lá fora, pergunto-me, serei eu realmente capaz me entregar? De verdadeiramente me entregar? Tenho consciência das pessoas especiais a quem nada me dei. E porque eu nunca soube esperar por elas, nunca tiveram qualquer chance. Tinha que ser um agora e já, e nunca foi. Por isso, não farei eu o mesmo contigo? Senão te souber logo protagonista, conseguirei dar-te espaço e tempo? Ou pior, muito pior, se te reconhecer como tal, não me impedirá o medo? Eu que amo a vida a todo o segundo, que mantenho a fé e optimismo, que me dou em amor e amizade, serei eu capaz de amar um homem? Tenho que acreditar que sim. O tempo responderá. Até lá, ligo a ignição e recomeço o meu caminho.
Tenho te a ti à espera. E sabes-me bem.

Ana Almeida

* ao som de "Use somebody" - Kings of Leon

A Máscara

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Olha para o relógio que marca 10:30h e sorri. É uma privilegiada, pois uma grande parte das pessoas já se encontra a trabalhar a essa hora e ela ainda tem todo o tempo do mundo. É senhora e dona das suas horas.
Agarra na caneca de café com leite e vai até à varanda, onde abre a janela e se deixa invadir pelos raios de sol. Um dia de Inverno solarengo. Não tem do que se queixar. Começa a acreditar piamente que o mundo é o que nós queiramos que ele seja. E, apesar de ter um coração desocupado ainda, sente o seu ser radioso de amor para dar. Não sabe quando, nem a quem, mas também não está nem um pouco preocupada com isso.
Olha para a vista que se estende para o rio e encanta-se com os reflexos dos raios de sol na água. Perde-se em contemplação.
De repente, sacode o cabelo e decide estar na altura de se arranjar. Hoje sente-se inspirada. Passados quarenta e cinco minutos, abandona o prédio, inspirando uma grandiosa lufada de ar fresco, e dirige-se ao seu carro, onde dará início à maratona do dia.
Já sentada ao volante, parada num sinal vermelho que teima em demorar mais do que deve, decide olhar-se ao espelho. Fantasia... tudo fantasia. Desde que acordou que resolveu dar lugar a uma das suas muitas personagens. Mas isto cansa-a. Esgota-a.
O sinal abre. Arranca e acende o leitor de música, no qual escolhe uma música qualquer que a faz lembrar sabe-se lá do quê, que se passou ninguém imagina quando. Digo ninguém porque esse é um segredo só dela. Ainda que já tenha sido partilhado, a forma como verdadeiramente o sente ou o recorda, só ela conhece.
E, mais uma vez, o seu “eu” dominante reclama o seu lugar e transporta-a para aquele sítio único onde ninguém, mas rigorosamente ninguém tem acesso permitido. E, sem ser por propositadamente o querer ou desejar, é precisamente nesse milésimo de segundo em que nos distraímos que o mundo a perde.

Shana Andrade

10.1.09

Feiticeira

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Passou as mãos pelo cabelo e lançou-o para trás. Hoje, nem o roçar dos fios na cara aguenta. As vozes são-lhe insuportáveis, parecem milhares de soldados a marcharem-lhe sobre os ouvidos. Apetece-lhe pedir ao mundo silêncio. Porque tem o ser humano a necessidade constante de estar sempre a dizer algo, mesmo quando esse algo não possui qualquer tipo de substância? Hoje gostaria de se entregar ao saboroso abandono do silêncio. Todos os ruídos assumem proporções megalómanas, hoje. Nem o seu cérebro se cala com os sucessivos pedidos de necessidade de shutdown. Não se trata de uma crise existencial, nem de um estado depressivo. Trata-se de pura necessidade de silêncio, de paz, de calma, de tranquilidade. Mas não se pode dar a esse luxo. Ergue-se, reinventa-se, reinicia o seu sistema e prossegue. Nada que já não tenha feito milhares de vezes ao longo da sua existência. E os que a rodeiam nem suspeitam da animosidade interna que se instala entre ela e o mundo que a envolve.
A inviabilidade de ser quem é, quem a torna senão uma anarca de si mesma?
O mundo que a envolve é ela mesma. E é com ela mesma que não está bem e vive em permanente guerra fria. Sabota-se, renuncia, recusa. Recusa a felicidade, o optimismo, o bem-estar. Não conhece nenhum desses sentimentos. Alegria talvez lhe seja o único sentimento que lhe parece familiar porque a efemeridade a transporta.
Está cansada do nada que sente e, por isso, tão facilmente se deixa encantar por outros pequenos nadas que, em tentativas frustradas, tenta acreditar serem tudos. Nada a preenche verdadeiramente porque nada é assim tão bom ou duradouro. É “como uma feiticeira leviana que salta de fogueira em fogueira” à procura da imolação da alma, como alguém um dia a apelidou. Busca noutros o alimento que não consegue retirar de si mesma, busca “paladinos devotos a quem possa conspurcar a fé e abalar as convicções de uma vida, almas puras ou semi-puras”, “alguém que salte do seu cavalo sagrado e se entregue com o mesmo fogo de alma que o movia na sua fé”. Dentro de si, sabe que o que tem para oferecer é sublime e só uma alma mais pura o poderá desfrutar na sua plenitude sem o combater.
Claro que todos nós sabemos, até ela mesma, que morrerá sem o encontrar. Até lá, apenas vai tocando ao de leve num e noutro, marcando a sua diferença. “Como um ferro daqueles que marcam a fogo o gado”, alguém comparou. Onde toca fica a sua marca.
E o seu maior lamento é o facto de isto não ser um dom mas, sim, uma maldição.

P.S.: Citações de retiradas de uma conversa com Malandra
A última citação é da autoria de Sílvia P.

Shana Andrade

7.1.09

Posso?...

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Estou cansada ... tão cansada que não fazes ideia. Só me apetece repousar e sossegar. Achas que me posso valer do teu colo por uns minutos? Bem sei que uma mulher como eu não se deveria rebaixar a tanto. Mas já não quero saber. Já terás visto pior na tua vida, com toda a certeza. Deixa-me só pousar a cabeça no teu peito ou nas tuas pernas. Não fales, não digas nada, nem tão pouco penses. O teu pensamento pode contagiar o meu.
Preciso ser frágil só por uns instantes. Achas que me respeitarás ou admirarás menos por isto? Achas que se assumir a minha fragilidade te assustarás porque passarás a ver-me como igual a todas as outras e deixarás de acreditar na minha capacidade de manter a distância? Sabes?... Também não quero saber. Pensa o que quiseres, estou cansada demais para me preocupar com isso agora. Nada na vida me importaria mais agora do que este sossego de alma. Trago sempre a minha essência demasiadamente agitada e preciso abrandar.
Achas que, juntamente com o teu colo, me poderias agraciar com umas festinhas no meu cabelo? Gosto muito e relaxa-me tanto. Não sabias, não é? Não fazias ideia que me prendesse por tais gostos. Mas prendo. E se isso me torna ridícula, permite-me que mo permita. Este perfeccionismo constante é tão desgastante...
Então? Dás-me permissão para o que te pedi e aceitas ser a testemunha deste meu momento merecidamente ridículo? Acede ao meu pedido. Talvez seja a primeira e única vez que to peça ou que o possas presenciar. E desculpa-me por te expor à minha vulnerabilidade, pois sei que dificilmente te recomporás dela. Ver um titã a pedir colo talvez seja a maior ironia do destino. E eu sou a maior ironia do teu.
Ainda assim, ... posso enroscar-me em ti e perder-me nas horas, no tempo e no espaço, nas convenções, nas expectativas e nas desilusões? Por algum tempo, ajuda-me a volver àquele sítio na minha infância em que podia tudo isto. Em que nada era tido como fraqueza ou desadequado à idade ou à imagem.
Concede-me estes momentos e tens a minha garantia pessoal que, assim que me recompuser, estarei mais fria, dura, segura e mais mulher que nunca. Palavra de Shana.

Shana Andrade

Passion*

Poderia ter sido uma noite igual a tantas outras. Mas não era. E nem a propósito, como que a adornar o momento, uma lua cheia brilhava desafiante no céu.
Depois da animação habitual na pista, o silêncio. A excitação do costume em corpos suados deu lugar à quietude expectante. Retiraram-se para os lugares sentados que antes ocupavam e aguardaram.
No palco iniciava-se o ritual. Primeiro o bater leve das mãos, as palmas que se encostavam uma a outra. Depois o rodopiar de um corpo ao som das castanholas, até que, por fim, os pés bateriam no chão de forma furiosa e dariam início à dança que haveria de enfeitiçar todos os presentes. Dois homens acompanhavam a bailarina. De um deles, o que estava sentado, surgiu o som de dedos a passarem por cordas de guitarra. De outro, que se tinha dirigido para o microfone, emanou um som rouco e profundo que em breve se tornou canção. Ninguém na assistência reconhecia a língua, mas todos sem excepção conseguiam sentir o significado. Um amor tinha sido perdido.

O deles, pensou ela. E disfarçada por entre a multidão de forma a não ser reconhecida, permitiu-se a si mesma recordar o dia em que tudo aconteceu.
Como da primeira vez, seguiu-lhe as mãos, viu-as descer para o peito que se entrevia por entre os botões abertos da camisa negra. Nessa noite, enquanto ele cantava, olharam-se por segundos e foi o suficiente para se saberem um do outro. Quando ele saiu do palco, ela seguiu-lhe o olhar e depois os gestos. Seguiu-o a ele, sem qualquer dúvida que aquele era o caminho certo. Quando voltaram a olhar um para o outro, estavam sozinhos. Ele foi o primeiro a aproximar-se. Ela rendeu-se ao movimento dele. Com a mesma fúria apaixonada com que entoava melodias, arrancou-lhe a roupa do corpo. Ao som da música lá fora conheceram-se. Reconheceram-se. Ela soube. Ele sentiu. Teve medo do que sentiu. Dividiu-se entre o desejo do beijo e a vontade de lhe bater. Queria marcar-lhe a pele. Queria ficar nela para sempre. Era lhe igual.
Ela adormeceu nos braços dele com a certeza que o amava. E que acordaria sozinha na madrugada seguinte. Enganou-se. Ele continuava a abraça-la de manhã. Coube-lhe a ela dizer adeus.
Anos depois, leu o cartaz que o anunciava de volta a cidade. Depois de tanto tempo, o nome dele. O nome. Ali. Ao alcance da mão. Não teve como resistir ao apelo de o voltar a ver.
E nessa noite, enquanto ele contava a história de um amor perdido, ela rezou baixinho para que os olhos de ambos se reencontrassem novamente. Rezou para que pudessem ter mais uma oportunidade. Rezou para finalmente lhe poder dizer ao ouvido que estava marcada para todo o sempre.

Ana Almeida

* Ao som de A MI MANERA - GIPSY KINGS

Pshiuuuu!!!

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Entras e o coração dá um saltinho... pronto, não vamos diminuir o que é. Um salto. Ficas, permaneces. Abro a janela, fecho a janela. Distraio-me. Não, ... tento distrair-me. Espreito. Ainda lá estás. Abro a janela, fecho a janela. Os minutos passam; as horas também. E nada. Será que devo...? Não, melhor não. Torno a espreitar. Ainda lá estás. E eis que te vejo passar de verde a cinzento.
ESPERA!!! Não me deste tempo suficiente! Contagiaste-me com a tua indecisão. Agora sou eu que não tenho coragem. E queria tanto perguntar-te...
Que tens feito ultimamente? Como te sentes? O que vai na tua cabeça nestes últimos tempos? Tens saído? O trabalho como tem corrido? Já conseguiste resolver mais alguma coisa? Tens dormido bem? Tens passeado muito? Já te recompuseste?
Algumas das perguntas que já não posso fazer são as anteriores.
As que não posso nem devo fazer são: O teu status quo mudou mesmo assim tanto? Não sentes nem um bocadinho a minha falta?
O teu silêncio impôs-se. Não tenho capacidade de ultrapassar um muro tão alto. O teu silêncio devorou-me. Quebrou-me as asas. O teu silêncio não me dá o direito de perguntar seja o que for. O teu silêncio que eu tomei como meu matou-me a fala.
E o meu silêncio é apenas pura cobardia disfarçada de respeito a ti.
Nunca me pediste que me calasse. Mas esqueceste-te de me pedir que nunca deixasse de te falar... e foi este o teu maior silêncio.

Shana Andrade

4.1.09

Como ...?

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Confiaste demasiado no meu discernimento e no meu lado racional e esqueceste-te que em mim também habita uma mulher e que essa mulher, tal como todas as outras, tem um lado emocional e irracional.
Gostava de começar por te dizer que o tempo parou quando nos afastámos, que nada me sabe ao mesmo, que o meu sorriso desapareceu, que não sinto vontade de sair da cama e que passo os dias a chorar. Mas estaria a mentir-te. Nada disto aconteceu.
Quando nos afastámos, o tempo não parou, os meus cinco sentidos funcionam como dantes, o meu sorriso continua a manifestar-se, todos os dias me levanto da cama e não passo os dias a chorar. Esta é a verdade. Mas, verdade é também que o apetite diminuiu muito nos primeiros dias e acresceu de forma considerável nestes últimos ... carência, dizem. O sorriso nem sempre é verdadeiro. Por vezes só o uso, como a uma camisola qualquer. Os meus olhos têm estado um pouco mais baços, os suspiros sucedem-se com alguma frequência e, a determinadas horas, recordo os teus passos até mim.
Sinto-te a falta e disto não há como fugir.
Sinto a falta das nossas conversas, da facilidade com que me provocas um sorriso ou uma gargalhada, da maneira como semicerras os olhos quando a claridade está intensa, da forma traquina como sorris e uma sala se enche de sol, dos teus bocejos após o almoço, sinto falta do teu pedaço de pão na gema do meu ovo. Da expectativa que era ver-te ou não chegar, da facilidade com que coras, da tua companhia nocturna, mesmo quando não falamos e sei que estás bem e do teu cheiro. Cheiras-me sempre bem, a fresco, a manhã.
Como se volta o tempo atrás? Como se apaga a estupidez? Como se desfaz um mal-entendido sem quebrar a promessa feita?
Como, como como....???

Shana Andrade